terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Monica Vitti. A beleza que Antonioni tornou eterna






















Michelangelo Antonioni

Michelangelo Antonioni

No início dos anos 60 surgem quatro dos melhores filmes de M. Antonioni A Aventura (1960), A Noite (1961), O Eclipse (1962) e O Deserto Vermelho (1964). A Aventura entrou no mundo do cinema como um furacão. Depois de diversas dificuldades financeiras e falta de meios técnicos, o filme estreia em Milão (já depois de ter sido banido e acusado de «pornográfico»).
Antonioni procurava uma maior simplicidade. Não desconhecia os seus pequenos erros técnicos, fazia-os de propósito. Entre eles o uso de “campo” e “contra-campo” e certos erros de posicionamento ou movimento. Dirigia os actores para além da chamada linha de 180 graus, desorientando com isso o espectador. O actor é apresentado à direita, mas após um corte surge à esquerda sem nenhuma explicação de como foi lá parar, a dificuldade de percepção de mudança de planos dá-se devido aos planos fechados. O actor apresenta-se quase como espaço em movimento, Antonioni filmou-os como jamais foi feito na história do cinema.
A outra grande inovação foi o repetido uso dos temps mort (tempos mortos), onde a câmara corre para além do momento quando qualquer outro realizador teria cortado. Barthes defendia que este traço exclusivamente antonioniano era simplesmente uma extensão de cada insistência visual do artista sobre o poder do olhar. O realizador «olha (va) para as coisas de forma radical, até ao ponto da sua exaustão» contra toda a (convenção narrativa), estendendo os momentos (inexpressivos) de um episódio. O exemplo supremo é a sequência final de O Eclipse. Um momento inexpressivo que descreve na forma mais bela a relação humana, entre as personagens representadas por Mónica Vitti e Alain Delon, uma relação de puro desinteresse e incomunicabilidade, de que tantas vezes Antonioni é acusado. O título de O Eclipse assume uma qualidade simbólica. Transmite o sentido de como a vida emocional normal é perturbada, como param os sentimentos (da mesma forma como acontece um eclipse). O filme termina com um grande plano de luz, de cima. Antonioni perde o rasto das personagens, no final nenhuma comparece ao encontro combinado. Vemos imagens mundanas e vagamente sinistras, rastos de vapor no céu observados por dois homens num telhado, a cara perturbada de uma mulher por trás de uma vedação, um edifício inacabado interditado e, evidentemente, a esquina sem ninguém.
A sequencia final é tipo documentário como se as vistas e sons do vulgar mundo da não ficção fossem os mais agourentos. Não só ambos os protagonistas desaparecem, como também os confortos da história de ficção que os contêm. A arte de Antonioni é como o entrelaçado de consequências, de sequências e de efeitos temporais que decorrem de acontecimentos fora de campo.

«Quando a cena principal acaba, há momentos menos importantes; e para mim, parece valer a pena mostrar a personagem nestes momentos, de costas ou de frente, focando um gesto, uma atitude, porque serve para clarificar tudo o que aconteceu, assim como tudo o que é deixado dentro das personagens.» M.Antonioni

Colorista do cinema, Antonioni, serve-se de cores frias activas até ao máximo da plenitude ou da sua intensificação para ultrapassar a função absorvente, que mantinha ainda personagens e situações transformadas no espaço do sonho ou de um pesadelo. Com Antonioni, a cor sustém o espaço até ao vazio, apaga o que absorveu. Bonitzer disse: «Desde L’Aventure, a grande preocupação de Antonioni, é o plano vazio, o plano desabitado. Como acontece no fim de “O Eclipse”onde todos os planos percorridos pelo casal são revistos e corrigidos pelo vazio. Antonioni procura o deserto: Deserto Rosso e Profissão: Repórter que termina com um travelling para a frente sobre o campo vazio, num entrelaçado de percursos insignificantes, no limite do não-figurativo, para uma aventura cujo termo é a eclipse do rosto, o apagamento das personagens. Em Antonioni, o rosto desaparece ao mesmo tempo que a personagem e a acção, onde a instância afectiva é a do espaço qualquer que Antonioni desenvolve por sua vez até ao vazio.

A primeira experiência de Antonioni com a cinematografia a cores foi com O Deserto Vermelho. As cores desempenham um papel muito significativo no filme, talvez devido à espera de Antonioni para filmar a cores. Antonioni falou do uso da cor para dar forma aos «estados de espírito» – não apenas aos estados de espírito das personagens ou situações de enredo, mas também aos do público. Aqui não há propriamente um deserto, deserto é talvez uma metáfora para a aridez da vida emocional, e vermelho talvez para o impulso erótico demasiado agitado que serve como substituto para uma vida mais equilibrada. Em todos os seus filmes defendeu o valor, força e subjectividade visual sem ter a imagem que depender de uma banda sonora.
Neste filme o efeito técnico do uso de lentes de telefotografia e zoom foi inovador. Esta tende a aplanar as distâncias entre os planos que se encontram à sua frente, reduzindo a profundidade de campo.
Antonioni escreveu: «Eu trabalhei muito em O Deserto vermelho com a lente zoom para tentar obter efeitos de duas dimensões, para diminuir as distâncias entre as pessoas e os objectos, fazer com que parecessem aplanados uns contra os outros.»
Este aplanar contribui para a sensação de opressão física, Giulliana parece pregada à parede, e as barras entre os casais parecem fazer parte dos seus corpos. O Deserto Vermelho, mais do que qualquer outro filme de Antonioni, estabeleceu um forte contraste entre os sentimentos das personagens e o mundo exterior, de uma forma bastante diferente da que acontece em O Eclipse. O estado da personagem Guilliana é visto nas imagens do filme, como um espelho. O próprio cenário, um complexo industrial, ilustra o estado desta personagem, onde é criada uma tensão psicológica que sufoca o próprio espectador. Em quase todas as cenas as cores são esmaecidas e discretas, mostrando um mundo descolorido como metáfora de um distanciamento com relação às coisas do mundo. Se a personagem é uma testemunha do ambiente, tem obviamente que ser apresentada como contemplativa, e isto exigia que nada mais fizesse do que olhar em seu redor, muitas vezes de costas para a câmara. Não há fusões nem fades, usados geralmente para expressar passagens e intervalos temporais. Existem somente cortes secos, realizados frequentemente de forma a dissimular os deslocamentos espaciais e intervalos temporais.
Os filmes de Antonioni sempre foram do presente, sempre falaram das coisas que ocorriam no mundo enquanto eram realizados e sempre traçaram uma cartografia das relações humanas naquele dado momento.
A fotografia de Carlo Di Palma e a interpretação de Monica Vitti como a insegura e desequilibrada Giuliana (que contrasta com uma certa frieza e automatismo das personagens em seu torno) são os pontos altos de uma viagem num labirinto de dúvidas e medos enclausurados numa prisão de máquinas e vazio. O terror do seu rosto aterroriza-nos e transmite-nos uma compaixão imensa pela forma como é mostrada a sua tremenda solidão. O tratamento pictórico do filme, tirando o máximo partido da composição e da cor, acentua a importância da paisagem como parte integrante da narrativa. As cores aqui são apagadas, envoltas por uma dominante cinzenta que unifica as várias tonalidades, privando-as das gradações mais vivas. Isto justifica-se porque, no filme, o mundo é visto pelos olhos de uma mulher que sofre de neurose e se sente separada da realidade. Neste caso a cor dá a ideia de como a personagem vê as coisas, muitas vezes sem a necessidade de recorrer ao diálogo.

Antonioni desenvolve os seus filmes em duas direcções: uma exploração dos tempos mortos da banalidade quotidiana, e a partir de O Eclipse, um tratamento de situações limite que as leva até às paisagens desumanizadas e espaços esvaziados que vão absorver as personagens e acções.

Mestre nas cenas finais, excede-se em Profissão: Repórter (1975), onde toda a cena (uma só cena) da morte do personagem decorre durante sete minutos. Locke, cansado da sua vida e identidade, tenta livrar-se delas adquirindo uma outra identidade e uma outra vida. Os acontecimentos ao longo do filme apontam para a necessidade de Locke em estar noutro lugar, noutra vida. Todo o filme se desenrola como uma passagem, indicando o final, ou seja, a morte. Embora a morte nos parece uma experiência violenta, no filme esta aparece-nos como uma experiência tranquila. As personagens aparecem ali sem qualquer referência ao seu passado, talvez porque cada vez mais as pessoas têm menos passado (do que no passado). Estas personagens não necessitam de transportar qualquer bagagem, quer moral ou psicológica. Em todos os seus filmes, em especial neste, deixa o silêncio ter o seu lugar, desprezando a necessidade de encher os espaços vazios com música comentativa.
O filme dá-nos informação sobre acontecimentos passados por fragmentos, como acontece em relação ao acidente sofrido por Guilliana em O Deserto Vermelho.

Nos três filmes, o silêncio assume o papel principal. Foi do silêncio que surgiu um dos aspectos mais estudados no vocabulário cinematográfico: os tempos mortos. Onde superficialmente não ocorre nenhuma acção, mas onde os seus personagens sem estarem em diálogo dão-nos as emoções dentro de ‘si’.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007




E deus agora cria as cidades: as flores do mal ou a flor má

Kevin Lynch escreveu um livro chamado a Imagem da Cidade. Não me lembro do que dizia, nunca dei nada por nenhum livro de teoria da arquitectura, mas lembro-me do título e lembro-me, hoje, que a cidade não tem imagem mas que as tuas imagens têm cidade.
Sabias que é deus ou Deus, sei lá, que agora cria as cidades? Dantes criava a selva. A floresta era dele (vou optar pela letra minúscula pois para mim igrejas são só arquitectura), dantes ele mandava na natureza, decidia onde é que nasciam as árvores, e as flores e os rios. Hoje já não. Hoje esse deus somos nós. Hoje somos nós que plantamos as árvores e decidimos se vamos ter um relvado verde com duas pedras. Hoje podemos escolher as flores mais bonitas para aquele espaço. Quando li o início e o fim da bíblia não era assim. Era ele que plantava e que dava forma e nome aos bichos. Hoje enjaulamo-los e pagamos para os ver limpinhos e de pelo macio. Tens ido ao jardim zoológico? Está cada vez mais urbanizado. Tens ido ao campo? Não? Pudera, os Portugueses só plantam eucalipto e esperam que aquilo dê boa madeira para a mesa onde amanha vamos tomar o nosso café bem no centro do Porto. No Rivoli ou no Lobbie? Já me estou a perder.
Era deus que tratava desses assuntos, da natureza, hoje somos nós! E as cidades? Adoro cidades, sabes? Estou a estudar arquitectura, é normal, mas gosto demasiado de cidades.
Hoje é deus que cria as cidades. Já não lhes conseguimos por as mãos. Crescem e crescem como querem. Hoje as cidades já não são para nós, sabias? Já não precisam de nós, são bichos ou plantas, os novos bichos e as novas plantas. Urbanizámos o território para nos servir, humanizámos os espaços ou o espaço. Criámo-las para as habitarmos, um organismo onde metíamos tudo o que precisávamos para viver. Mas elas crescem sem parar. Sabes o que me entristece? É que tenho umas cadeiras na faculdade que nos ensinam a planear cidades, a prever, a fazermos o papel de deus ao inventarmos para onde e como a cidade vai crescer. Mas…não sei, não dá para agarrar a cidade… Tudo o que fazemos é urbanizar ou reurbanizar parcelas de espaço, mais ou menos extensas que coordenam e qualificam, que querem agir em rede de complementaridade, mas…não a conseguimos agarrar. Parece um organismo vivo onde ninguém, nem o deus que parece que criou as flores, tem mão. Não dá para planear porque ela cresce sempre da maneira inversa. Por isso te falo em inversão de valores. Se me pedirem para planear o futuro natural do país eu consigo: acabo com os pinheiros e os eucaliptos e mudo a floresta nacional para melhor, mas se me pedem para planear a cidade tenho ideias incríveis, sei o que a cidade precisa para evoluir no bom caminho, mas não dá! É esforço perdido, ela vai sempre crescer na direcção que bem lhe apetecer.
Já vi as tuas fotos, são estranhas, sabes porquê? Andas por aí a fotografar a cidade sem pessoas, a horas mortas, vais para lá de manhã bem cedo ou ao domingo, mas não precisas. Filosoficamente falando, tenho andado a pensar nisto, a cidade já não tem dias e horas mortas porque não precisa de pessoas e cresce sem lhes perguntar se tem mesmo de crescer e se é essa a direcção.
Ando a ler as flores do mal, traduzidas, porque nunca me apeteceu aprender francês, e percebi que Baudelaire fala de uma vida da cidade que já não existe. Uma cidade de pessoas, feita por elas e para elas. Não sei se naquela altura o Homem ainda tinha mão na cidade, mas pelo menos a cidade precisava dele. Era uma grande flor que crescia ao ritmo da luz, mas que crescia também ao ritmo de uma vida urbana intensa. Hoje a cidade não precisa de nós! Eu ainda gosto das cidades e ainda as uso como o Baudelaire fazia, mas isto sou eu. A cidade está como nas tuas imagens, desprovida de gente. É uma soma de arquitecturas, ruas, vazios. As pessoas vivem dentro, no dentro e só usam o fora para ir para outro dentro mais ou menos interior. Gostei da escolha dos sítios (gosto desta palavra) que escolheste para fotografar, são paradigmas do que eu digo. São ruas de passagem entre dois dentros. As cidades deixaram de ter permanências e a questão da mobilidade está mais na ordem do dia do que a qualificação do espaço público, sítios da permanência por excelência. Fala-se muito em espaço público mas as praças são só lajes de granito, os cafés ás moscas e as lojas museus de peças que não auguram uso. As pessoas jantam sandes pelo caminho, fecham-se na internet e quando consomem tentam poupar tempo em cidades artificiais.
Não vejo o futuro das cidades com bons olhos, muito menos com muitos olhos de muita gente, gente que criou a cidade para ser servida e que hoje tem um papel de subserviência à cidade.
Já leste As Flores do Mal? Lê porque é um bom livro, e os bons livros lêm-se tão pouco, mas lê-o também para reflectires sobre a cidade de hoje, e se te interessar tanto como a mim, planeia o (ou um) crescimento da cidade, pensa em como deve ser a sua evolução, mas não cries falsas ilusões, porque já não consegues pôr mão nela.
Vemo-nos amanhã?, na cidade.

jose andre ramos, Porto,26.6.07










































quarta-feira, 17 de outubro de 2007



Sobre a Imagem da Fotografia. o principio da indiferença

O principio da indiferença


A fusão entre a imagem - movimento e a imagem - tempo, em Deleuze, realiza-se na fotografia. Aqui a imagem fixa, a sua imobilidade faz de imediato a diferença da imagem cinematográfica. Podemos dizer que o tempo da fotografia se encontra fora do tempo, e que o seu factor de estranheza reside no facto de toda a fotografia ser passado, ou seja, fixa no tempo de hoje um tempo passado, que já foi. O cinema contraria a fotografia. Na imagem cinematográfica o tempo não se encontra fora do tempo, talvez a sua imagem – movimento contextualize, a torne num tempo de hoje, embora tão passado quanto o da fotografia. Se, como Cocteau escreveu, o cinema filma o trabalho da morte (la mort au travail), a fotografia promove um lugar cada vez mais alargado para o esquecimento. Reporta mas não recorda. Mata.
Como fez Barthes, afirmar que a fotografia testemunha um passado, é como afirmar que a imagem da fotografia se situa no presente, revelando o passado. (Perante uma fotografia não nos colocamos no olhar do fotografo, olhar situado no passado, mas no nosso olhar – hoje. Será o contrario?) Não nos colocamos no olhar do espectador? (o qual fazemos quando o nosso olhar entra na imagem fotográfica).
A imagem fotográfica não nos situa nem no presente, nem no passado, mas no “entre”, entre as duas dimensões do tempo. Entre a suspensão dos dois tempos. Neste momento o real desaparece para dar origem à imagem, na sua condição de visibilidade.
A imagem fotográfica é superfície. É o espaço de significação que se constrói para ao mesmo tempo se desmentir ou resgatar ao limiar da identificabilidade. A representação pode ser um método de transmissão, uma comunicação peculiar, pois a criação artística aproxima-se e afasta-se da realidade ao mesmo tempo. A representação pode ser designada como substituição, separação, mas pode ser também numa das suas faces, verdade.
Desde Guy Debord que a representação é a razão cimeira da «sociedade do espectáculo», onde a expropriação da identidade, da singularidade, da individualidade é uma constante. Já Godard diz-nos «o conhecimento da possibilidade de representar reconforta-nos perante a sujeição exercida pela vida. O conhecimento da vida reconforta porque a representação tem a aparência de uma sobra.»

Tudo mudou com a concepção da fotografia. Mudou a nossa concepção do tempo, do espaço. A concepção que temos, não existiria hoje, sem o aparecimento da fotografia. Esta não é representação pura, mas sim um elemento do real, um registo do espaço real. Tendemos a refazer a nossa experiência do real, reconstitui-la, através da imagem. As imagens encontram-se no “entre”, ou seja, entre o real vivido e a nossa percepção desse mesmo real. Entre o real e o seu desaparecimento. Na representação pela fotografia é necessário congelar o representado. Reduzir algo à sua representação pode ser um processo de desencantamento do mesmo. Reduzindo-a (fotografia) à bidimensionalidade e à significação de uma imagem. A duplicação (pela imagem) leva também a colocar questões sobre a presença e relação do próprio autor para com as imagens que duplica (de uma forma quase automática e consciente). Convertendo assim as imagens a uma virtualidade, por outro lado, ao imortaliza-las, ao converte-las em aparência, destrói-lhes o seu carácter voraz, de que provém. O sentimento de tempo que a fotografia nos devolve e que nos obriga a lembrar a nossa natureza perecível (ao contrario da arte clássica, que consagrando, nos projectava numa escala de eternidade), como refere Rolan Barthes, esse sentimento de tempo aqui fica anulado pela objectividade das próprias imagens.
Imagens, ou representações? Substituição da imagem pela imagem de uma imagem; reduzindo a tridimensionalidade do “espaço” à espessura de uma imagem. A possibilidade de reprodução, contribui para retirar ao objecto de representação ‘primeiro’, a sua fisicidade, tira-lhe a sua dimensão física, corpórea (a sua condição de objecto de culto) que o distinguia de outros objectos de representação. Doando-lhe desta forma um carácter de mera imagem, uma condição de imagem dupla, duplicada.
Hoje a arte é totalmente concebida nesses termos. Habitámos numa civilização da imagem, e a realidade, cada vez mais, é substituída por imagens (ficcionais ou não). A representação de algo apresenta-se como uma fixação provisória do representado, até ao seu desaparecimento, por uma nova representação. E, por isso, tantas vezes associamos a imagem à morte, ou a representação à morte?
A imobilidade da imagem é como o resultado de uma relação controversa entre dois conceitos como: o real e o vivo. Só existem, só se produzem e só se consomem imagens. Estou, desta forma, a negar-lhes o poder da fotografia de generalizar, desrealizar por completo a nossa percepção, sob o pretexto de ilustrar o desejo de consumo de imagem, hoje. A sua insignificância só ganha significado através de uma legenda. Não estou certa disto. Enquanto soltas não têm significado? A sequência pode dar-nos a legenda (que precisamos ou não).
A imagem pode ser uma evidência. Como evidente surge para interromper a imaginação, por outro lado a representação, por si, dá-nos a capacidade de imaginar. Diria que foi a invenção da fotografia, que antes de tudo, correspondeu à introdução de uma técnica de conversão duplicadora das coisas em imagens, ou seja, um processo de insistente duplicação. (A infinita multiplicação e difusão que a imagem ganhou leva à substituição da realidade).
Graças à reprodutibilidade o lugar do original fica de certa forma perdido. Ate o lugar ‘primeiro’, o lugar onde nasce a primeira imagem, o primeiro objecto da representação fica também perdido e de certa forma imperceptível, transformando o objecto urbano em imagem.
Na cadeia de acções que acompanham a criação artística, há uma falha. Falha que se encontra na incapacidade do autor para explicar totalmente a sua intenção, esta diferença entre o que tencionava realizar e o que, de facto, é realizado, é o factor pessoal contido na obra. Factor entre o intencionado e o que é expresso. O acto criativo não é apenas desempenhado pelo autor, o espectador leva a obra a contactar com o mundo, acrescentando-lhe assim a sua contribuição. Em toda a criação é necessário ter em consideração os dois pólos da criação artística: o artista e o espectador, como referiu Duchamp no texto Le processus créatif. («Considérons d’abord deux facteurs importants, les deux pôles de toute création d’ordre artistique: d’un côté l’artiste, de l’autre le spectateur qui, avec le temps, devient la postérité.»)*

* Marcel Duchamp. Duchamp du Signe. Ecrits reunis et présentés par Michel Sanouillet, Flammarion, Paris, 1994.
Como podemos hoje localizar o espaço vazio deixado pelo desaparecimento do autor, dentro de um panorama artístico onde este desaparecimento é cada vez mais presente? Somos obrigados a substituir o sujeito individual por um sujeito colectivo?

Estamos perante a impossibilidade da definição de obra em relação a um sujeito individual? O lugar da criação tem vindo a sofrer um deslocamento, iniciado com a arte moderna e extremado com a arte contemporânea. «A prioridade passou da obra ao acto e do acto ao artista.» (Raymonde Moulin (1983), op. Cit., pag.394)
A singularidade coincide com a passagem da obra enquanto objecto à obra enquanto conceito do criador. Nunca foi tão ecléctico, como hoje, o horizonte de possibilidades de criação, onde coexistem diversas linguagens, correntes; tendências, por vezes incompatíveis e contrárias. Materiais e meios de expressão tão diversos onde cada vez mais se questionam os valores de originalidade, singularidade e o envolvimento do criador/autor. O número elevado de intervenientes na mediação artística impulsionou uma maior intervenção na cadeia da criação. As praticas da imagens têm vindo a ser questionadas pela fotografia e pela ambicionada racionalização do olhar que esta tem vindo a desenvolver.

A fotografia de um lugar dá-lhe sentido assim como às diversas alterações que sofre. Promovem sempre novas leituras, reordenam a visão já estabelecida (anterior à fotografia). Se a fotografia funcionar como um meio de acesso aos lugares fotografados, confirma-se aqui o objectivo primeiro do meu trabalho. Dando assim novos pontos (olhares) das alterações próprias da paisagem urbana, como espaço de intervenção. Estes locais têm uma história, tendo como referência a sua identidade passada (sem o apoio de arquivo mais sim enquanto memória). A fotografia, aqui, serve como fixação dos limites de mudança, como registo de um lugar, que muitas vezes escapa ao olhar. Lugares construídos ou não, lugares à espera de construção, outros construídos até ao seu esgotamento, foram os pontos de eleição. Poderá o olhar fotográfico (ou o olhar do observador da fotografia, que são duas coisas divergentes) preencher o vazio dos espaços referidos? Os espaços existentes entre o construído e a sua espera?
A opção pela luz, enquadramento e ausência de pessoas, distorce a própria leitura do real, retira-lhe a banalidade alterando a visão do quotidiano. Estes lugares são territórios condicionados pela primeira leitura que temos dos mesmos. O lado autoral sobrepõem-se à intenção original, como foi referido, dá-se uma falha entre o intencionado e o realizado. (Qualquer representação é já em si mesma uma fuga à realidade). Construir um percurso narrativo, que permita questionar a banalidade destes lugares, poderá levar a entende-las (fotografia) como documento. Documentos que questionam como o natural e o construído se articula?
A fotografia permite uma relação particular com a cidade. Quem circula, dificilmente, opta por olhar ‘para cima’, ter tomadas de vista em altura, não optando por uma visão abrangente mas sim muito pelo contrário. A fotografia permite passar esta fronteira entre as pessoas e a cidade.
Na fotografia a presença de pessoas desloca/focaliza o olhar para algo que não tenciono focar. O modo como as pessoas intervêm e se relacionam com a cidade interessa-me, mas ao mantê-las fora do enquadramento, deixam de se colocar no assunto que quero tratar/ver. Não querendo de qualquer forma desumanizar a visão da cidade, embora esta visão seja feita a partir de planos corrigidos pelo vazio. As poucas figuras, que poderão aparecer, são anónimas, captadas a uma distância que limite os seus traços individuais. A presença de pessoas na fotografia encaminha o nosso olhar elas. Sendo apenas uma pessoa, olhamos para ela com maior curiosidade e atenção, funcionam como um espelho do lugar. A presença humana seria um dos problemas presentes à leitura da imagem, embora o confronto estabelecido pelo conhecimento do lugar fotografado (onde se torna difícil libertarmo-nos daquilo que conhecemos) se apresente como um problema maior. Para que haja paisagem no representado é necessário o anonimato, o desconhecimento do lugar.
Sobre uma fotografia cada observador projecta, na mesma, algo de ordem pessoal e particular. Cada fotografia é inaugural. Mais uma vez esta presente a questão de autoridade, enquanto exercício de autoria, interrompido pelas marcas pessoais do observador. A fotografia, a este nível, instaura um olhar do «espectador» enquanto indivíduo solitário, e não enquanto elemento colectivo. Como um contemplador. O autor, ao tornar a fotografia em imagem, desloca a primeira para um campo da metáfora.

A representação pela escrita, pela pintura (ou qualquer outro meio de representação do real) transgride/contraria/peca perante o real. Representa uma imagem fortemente marcada pelo poder criativo do seu autor, por defeito ou por excesso tende a ‘desmentir’ a realidade. Quanto à fotografia é conhecido que isto nunca acontece. O objecto fotográfico adquire a dimensão de prova, testemunha a existência do objecto representado. Embora, esta concepção de fotografia como espelho tenha sido muito presente na sua fase precursora e tenha talvez permanecido por lá.
A fotografia é de uma natureza diferente da do olhar, traduzindo-se na única técnica que nos permite ler o acidental e o momento presente, sendo capaz de reproduzir inconscientemente um espaço, a verdade é que «cada vez menos a reprodução da realidade, expressa algo sobre a realidade», como exprime W. Benjamin, num dos seus ensaios sobre fotografia.

Estas fotografias surgiram no âmbito do projecto final da cadeira de Fotografia nível II, tendo como intenção trazer um perfil da cidade com o fim de devolver uma imagem de acordo com o seu aspecto físico actual. O trabalho poderia ter divergido por outras narrativas, desenvolveu-se de forma a viver como fragmentos possíveis de uma cidade – Porto, onde a vemos no papel de visitantes e habitantes. Preferi construir uma narrativa parcial, focando alguns pontos distintos. Zonas compactas, de contornos um pouco acidentados, desde a Boavista a Sá da Bandeira. Onde o desaparecimento do social, espaço social e público confere ao espectador o lugar de visitante, onde se perdem os limites reconhecíveis da cidade.
Com o tempo a Avenida da Boavista (e suas artérias) foram o local de eleição e objecto de visitas periódicas, tendo estabelecido uma inevitável relação afectiva e pessoal com o espaço. Uma zona que vive pela sua diversidade, de fronteiras talvez um pouco (ainda) indefinidas, desde os seus limites naturais, às zonas que aguardam intervenção/construção, ao seu carácter compacto e já construído. Não foquei as suas ‘partes’ belas, mas talvez o mais miserável do seu corpo (cidade), não falando aqui da ausência de beleza. Desde a construção contemporânea aos lugares mais desumanizados (como um parque de estacionamento). Podemos vê-la como um organismo que nos envolve, um espaço privado para cada um de nós, do qual saímos e voltamos. Imagens que constituem uma memória, que recompõem um presente e um passado. Senti uma constante necessidade de conhecer a sua corporeidade e reler os seus lugares. A fotografia devolveu assim uma possível troca contínua de percepções, expressando-se como registo temporal, que multiplica, e aqui se encontra o seu poder de atracção. É algo que reporta ao real, ou a um dado aspecto do real.
Não se trata aqui de pôr em relevo grandes obras arquitectónicas, mas sim constatar a relação entre os espaços e a sua leitura como espaços desumanizados, facilitando-a. Verificando a identidade de cada um deles, na ausência dos seus possíveis habitantes e tráfego diário. Lugares à espera de transformação, de identidade ainda suspensa, grandes áreas em desuso, grandes vazios, novos edifícios que nascem na fronteira de novos limites (…). Resta ainda perguntar como poderei imprimir uma marca em algo que se apresenta em constante transformação, o real sempre em construção, que é a imagem da cidade?

A partir do momento que a ‘vida moderna’ e os seus actuantes procuram os territórios das grandes cidades, surge uma nova condição da experiência dessa mesma ‘vida moderna’, quotidiana. A diversidade de possibilidades de vida conduzem estes mesmos actuantes a experimentarem a cidade de uma forma anónima, experimentar o desconhecido, o que ainda não foi visto. Hoje, talvez já não tenha o mesmo sentido falar de dispersão pela cidade desconhecida, uma dispersão que poderia levar à catástrofe. Numa civilização moderna, onde a identidade urbana já não vive num estado de anonimato, ao contrário do que acontecia do século XIX, onde o flâneur desaparecia sem deixar rasto. A vivência do presente é hoje diferente. O arquivista da vida, que nos fala Baudelaire, o espectador do mundo que percorre as ruas procurando a sua diluição entre os outros (na multidão), observando o fenómeno urbano como se fosse um filme em tempo real... Esta figura existe ainda hoje, século XXI?
Baudelaire rejeitava toda a arte que tivesse como principio a imitação da natureza, é a partir desta rejeição que formula as suas críticas à fotografia enquanto arte. A construção da realidade a partir da fotografia, para o autor, não constituía uma construção tão profunda quanto a conseguida pela pintura ou por qualquer outra expressão pictórica. É o flâneur que cria a realidade, capturada dos fundamentos modernos da vida. Como podemos procurar hoje a fisionomia do espaço público, do espaço da cidade e as suas pessoas sem esta figura? O que poderemos chamar ao flâneur dos nossos dias, se ele existir? Este olhar “panóptico” de que tudo quer ver já não se encontra na cidade do ‘hoje’. Encontramos ruas banhadas de pessoas que as usam como elementos de transporte entre qualquer outro sitio para o qual precisam de ir e não para o qual teriam vontade de ir. Hoje a cidade vive da passagem impessoal e despersonalizada, sem a sensibilidade de um olhar atento. Mesmo enquanto espectador passivo o flâneur estava lá, como consumidor da imagem urbana. A cidade explorada e visualmente consumida ainda existe?
O flâneur aparece aqui como o olho fotográfico atento à mobilidade e as alterações da vida urbana, onde é retida a imagem da experiência (no olhar) como na fotografia. Existe uma congruência entre o elemento corpo e o elemento câmara, onde olho é câmara.
Desde o seu aparecimento que a fotografia foi sendo requisitada como instrumento teórico e prático enquanto elemento observador e investigador. É aqui que o fotógrafo flâneur (na falta de melhor palavra) desenvolve um inevitável fascínio pelos contrastes sociais e urbanísticos, que o levam à escolha de lugares menos ‘oficiais’ nas suas derivas. Veja-se no trabalho de Eugène Atget. O fotógrafo é uma versão do caminhante voyeurista que descobre a cidade, na sua paisagem de extremos vincados (por de trás das fachadas).
Não queria reduzir o meu trabalho a um discurso de arquivista e de documentação sem qualquer investimento autoral. Não como um comentário desumanizado da cidade. Esvaziamento fotográfico? Talvez. Desprezo pelo momentâneo, pelo movimento e presença humana.
Não pretendo que cada fotografia seja um fragmento da realidade mas que cada uma delas venha desencadear outras imagens. A fotografia não se restringe ao momento do ‘clique’, da tomada de vista, inclui também a sua recepção e a formulação de novas imagens. A sua eminente figuratividade informa-nos sobre a realidade, reporta-nos para uma existência.

Pode ser a fotografia uma experiência do outro? Na medida em que se apresenta como uma exclusiva forma de ver o mundo, de o sentir e conhecer. Mesmo com o olhar condicionado do seu autor?
Torna-se algo frágil numa sociedade que cresce, hoje, submersa em imagens. Procuramos assim reflectir o mundo pela visualidade? A fotografia ocupa hoje um lugar ambíguo de aproximação ao mundo exterior, com maior pertinência dado o facto que as práticas como a pintura, escultura, desenho assim como práticas de nova tecnologia digital, parecerem renunciar à presença e representação do real. Estamos diante da imagem moderna. Fotografia.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Hitchcock. Janela Indiscreta e o olho do voyeur.

wim wenders. das mais belas formas de se filmar duas pessoas
















servartes
















































Exposição "Um Projecto. Muitos Projectos: Uma ideia, muitas direcções."
Servartes. Constituição. Porto. 2007

bertolucci. como uma carta de amor ao cinema